É certo que, no Domingo da Ressurreição, Pedro e João
encontraram no túmulo a mortalha de Jesus. Os Sinóticos, que, por ocasião do
sepultamento, não falaram senão da mortalha, assinalam, no Domingo, os
“othonia” (= panos); a mortalha evidente faz parte desses “othonia”. São João
que, em seu evangelho, não falou na sexta-feira santa a não ser dos “othonia”,
assinala, no Domingo, os “othonia” e o “soudarion”. Veremos com M. Lévesque que
este “soudarion” é a mortalha, do aramaico em que pensa São João. Quem o
recusar será forçado a colocar a mortalha entre os “othonia”.
Que destino lhe deram os apóstolos?
Apesar de natural repugnância própria a judeus, para os quais
tudo o que toca a morte é impuro, sobretudo um pano manchado de sangue, é
impossível admitir que não tivessem recolhido com todo cuidado esta relíquia da
Paixão do Homem-Deus. É necessário
admitir também que a esconderam cuidadosamente. Deveriam protegê-la da
destruição por parte dos perseguidores da jovem Igreja. Por outro lado, não se podia pensar em propô-la
à veneração dos novos cristãos, ainda imbuídos do horror dos antigos pela
infâmia da cruz. Haveremos de voltar
com mais vagar a este longo período em que a cruz se escondia sob símbolos: só nos séculos V e
VI é que veremos os primeiros crucifixos que, de resto, aparecem ainda um tanto
disfarçados. Só nos séculos VII e VIII é que eles se espalham um pouco. Não
será senão no século XIII que se difundirá a devoção à Paixão de Cristo.
Acrescentemos a seguinte hipótese que está baseada em
fenômeno biológico misterioso, mas devidamente verificado: é muito possível que
nesta mortalha, portadora desde o início de manchas sanguíneas, as impressões
corporais não fossem visíveis durante muitos anos. É possível que elas só se
tenham “revelado” posteriormente, como sobre uma chapa fotográfica que esconde
sua imagem virtual até o banho revelador.
Pois existe todo um período obscuro em que a Mortalha (ou
Sudário) não aparece, no qual não pode aparecer. Era mesmo necessário que estivesse
cuidadosamente escondida, para ter escapado a todas as ocasiões de destruição.
Romanos, persas, medos, partos devastaram sucessivamente Jerusalém e demoliram
suas igrejas. E o que foi feito da
Mortalha?
Nicéforo Calisto escreve em sua História Eclesiástica que a imperatriz Pulquéria fez construir, em 436, em
Constantinopla, a basílica de Santa Maria dos “Blacherner” e ali depositou os
panos mortuários de Jesus, recentemente descobertos. É precisamente aí que iremos ver o Santo Sudário, em
1204 (Roberto de Clari). Entretanto, em 1171, segundo Guilherme de Tyr, o
imperador grego, Manuel I, Commeno (1122-1180) mostra ao rei Amaury de
Jerusalém as relíquias da Paixão: lança, cravos, esponja, coroa de espinhos e a
Mortalha que ele conservava na Capela do “Boucoleon”. Ora, tudo isto ali está,
mais uma Verônica, segundo Roberto de Clari. Convém, de resto, notar que
Nicéforo, morto em 1250, escreveu após a tomada de Constantinopla, em 1204,
quando a Mortalha desapareceu. Há, portanto, alguma confusão possível.
Mas, muito tempo antes, São Braulio, bispo de Saragoça, em 631, varão
douto e prudente, em sua carta XLII ao abade Tayon, fala como de coisa
conhecida havia muito tempo “de sudaruim quo corpus Domini est involutum – da
Mortalha (= Sudário) em que o corpo do Senhor foi envolvido”. E acrescenta: “A Sagrada Escritura
não diz que tenha sido conservado, mas não se pode tachar de supersticiosos
aqueles que acreditam na autenticidade deste Sudário”. Um “sudário”
que envolveu o corpo de Jesus não pode ser senão uma mortalha; vê-lo-emos no
capítulo do sepultamento.
Onde estava ela,
pois, nesta época?
Abramos os três livros do abade beneditino de lona, Adamnan,
“Sobre os Santos Lugares, de acordo com a relação de Arculfo, bispo francês”,
secção III, cap. X: “de Sudarium Domini”. Arculfo faz uma peregrinação a Jerusalém por volta do ano
640. Aí viu e osculou (beijou) o “Sudarium Domini
quod in sepulcro super caput ipsius fuerat positum – o Sudário do Senhor que no
sepulcro estivera colocado sobre Sua cabeça”. São as mesmas palavras com que se
expressou São João (cf.20,7). Ora, este sudário, segundo Arculfo, é uma comprida peça de tecido
que mede, avaliada a olho, cerca de 8 pés de comprimento (=2,44 m). Não é,
portanto, um lenço, mas sim um lençol ou mortalha (= sudário).
O venerável Beda, no começo do século VIII, também registra
este testemunho de Arculfo em sua História Eclesiástica (De Loci Santis). Mais
ou menos na mesma época, São João Damasceno assinava entre as relíquias
veneradas pelos cristãos o “sindon”. Vemos desde logo que “sindon” e “sudarium”
são empregados indiferentemente como sinônimos.
Parece resultar de tudo isto que no século VII a Mortalha
ficara em Jerusalém ou voltara para lá e que não foi para Constantinopla senão
mais tarde. Quando? Não sabemos. Talvez antes do século XII, durante o qual
alguns peregrinos se referem ao “sudarium quod fruit super caput eius” naquela
cidade; acabamos de ver segundo Arculfo que isto significa a Santa Mortalha. Em
todo o caso, já lá estava em 1204, por ocasião da 4ª Cruzada.
Roberto de Clari, cavaleiro da Picardia, que tomou parte na
tomada de Constantinopla, em 1204, nos conduz a terreno já muito sólido.
Roberto é considerado pelos críticos de história como
homem de instrução média, um tanto ingênuo e que se pôde deixar embair na
política dos altos barões, dos quais estava longe. Mas é testemunha muito
atenta e perfeitamente sincera em relação a tudo o que ele mesmo vê.
Ora, descreve ele minuciosamente (p. 82) todas as riquezas e
relíquias vistas nos palácios e
nas “rikes kapeles”, ricas capelas da cidade; especialmente no “Boucoleon” que
jocosamente denomina “el Bouke de Lion” (= o estreito de Lião) e em
Blachernes”. No “Boucoleon”, viu, a respeito de Jesus, dois pedaços da verdadeira cruz, o
ferro da lança, dois cravos, um fresquinho de sangue, uma túnica e a coroa. Viu
também (descrito à parte com longa lenda de sua formação, quando de uma
aparição de Nosso Senhor a um santo homem de Constantinopla) uma “toaille”,
isto é, um pano com o rosto do Salvador (como a Verônica de Roma) e uma tela
(ou placa de barro cozido) onde estava ela decalcada.
Mas foi em “Blachernes” que encontrou o Santo Sudário. Tudo isto escrito naquela rude língua d’oil do
século XII, que vive ainda nos atuais dialetos valões. É necessário lê-lo em
voz alta, com o sotaque do Norte, talvez ter também sangue valão nas veias,
para saboreá-lo plenamente. Em tradução, ei-lo aqui (p. 90): “E entre estes
outros havia ali um mosteiro, que chamavam Senhora Santa Maria de ‘Blachernes’,
onde estava a Mortalha em que Nosso Senhor foi envolvido; e que cada
sexta-feira era levada e estirada tão bem que nela se podia ver o retrato de
Nosso Senhor. E não soube jamais nem grego nem francês o que aconteceu a esta
Mortalha quando a cidade foi tomada”.
O Santo Sudário foi, portanto, roubado ou transformado em
presa de guerra, se se quiser ser indulgente. Ora, segundo os historiadores de
besançon, D. Chamard em particular, uma mortalha correspondente à descrição de
Clari foi consignada, em 1208, às mãos do arcebispo de Besançon, por Ponce de
La Roche, senhor do Franco-Condado, pai de Oto de La Roche, um dos principais
chefes do exército borgonhês na Cruzada de 1204. Essa mortalha, que tem todos
os indícios de ser o nosso atual Santo Sudário, continuaria a ser venerada na
Catedral de Santo Estêvão até 1349. Notemos de passagem que Vignon
emitiu dúvidas, em seu livro de 1938, sobre a estada em Besançon, mas, apesar
disso, continua a ser muito provável a referida estada.
No citado ano de 1349, um incêndio devastou a Catedral, e o
Santo Sudário desapareceu uma segunda vez, só seu relicário é que foi
reencontrado. Fora roubado, e este
fato explica provavelmente a falsa posição e as aventuras que geram ainda
preconceitos no espírito de certos historiadores, cada vez mais raros, que se
recusam a encarar o valor intrínseco do documento e de lhe examinar as imagens,
sob o pretexto a priori de que isto não pode ser senão uma falsidade. Seria o
mesmo que recusar estudar a lua, porque não lhe veremos jamais senão a metade!
A Mortalha reapareceu oito anos mais tarde, em 1357, como
propriedade do conde Godofredo de Charny, que a recebeu como presente do rei
Felipe VI. Este a teria recebido do ladrão, que se supões ter sido um tal
Vergy. Charny colocou-a na Colegiada de Lirey (Diocese de Troyes), fundada por
ele mesmo alguns anos antes. Ora, mais ou menos na mesma época
reaparece, em Besançon, uma outra mortalha da qual temos numerosas cópias, e
que era evidentemente uma incompleta e má reprodução em pintura da de Lirey.
Foi o que demonstraram, sem dificuldade, os enviados da Comissão de Segurança
Pública, que a destruíram, de acordo com o clero da Catedral, em 1794.
A Mortalha de Lirey não deixou por isso de ser alvo das
hostilidades dos bispos de Troyes: de início, Henrique de Poitiers; trinta anos
mais tarde, Pedro d’Arcy, que se opuseram à sua exposição pelos cônegos de
Lirey. Lamentavam-se de que os fiéis abandonavam as relíquias de Troyes, para
correr em massa a Lirey. Os Charnys cedo retomaram a relíquia, guardando-a por
trinta anos.
Em 1389 expuseram sua causa ao legado do novo papa de
Avignon, Clemente VII, que acabava de iniciar o grande cisma do Ocidente,
depois ao próprio antipapa em pessoa. Ambos autorizaram a exposição, não
obstante a proibição do bispo Pedro d’Arcy. Depois, em face das reclamações
deste, Clemente VII acabou por decidir, tentando um arranjo com ambas as
partes, que por um lado o bispo não poderia mais se opor às exposições, mas, por
outro, declarar-se-ia em cada exposição tratar-se de uma pintura representando
o verdadeiro Sudário de Nosso Senhor.
Pedro d’Arcy, em suas memórias, apresenta a Clemente graves
acusações eivadas de rancor contra os cônegos de Lirey, a respeito de simonia
por parte destes. Acrescenta, como se fosse verdade, que seu predecessor teria
feito uma pesquisa e recebido a confissão do pintor, autor da Mortalha.
Não se encontrou jamais vestígio algum dessa investigação
nem das declarações do pintor. Se algum pintor houve, parece muito provável ter
sido o que copiou o Sudário de Lirey para fazer o de Besançon. Na realidade,
todas as decisões não foram motivadas senão por questões de interesse
particular e pelo argumento do silêncio dos Evangelhos sobre a existência das
impressões. Parece que o sudário nunca foi examinado diretamente, sem
parcialidade, pois se teria então visto como se vê hoje, que não tem ele o
menor sinal de pintura. Mas o pseudopapa Clemente VII nunca se mostrou
preocupado com isto.
É muito difícil resumir disputas um tanto sórdidas. Mas bem
parece poder concluir-se que o pobre Sudário não tinha senão um defeito, o de
não possuir “autênticas”. No entanto, como possuí-las, se sua presença em Lirey
era o resultado de duplo furto, sendo que o segundo comprometia o próprio rei
da França como acoutador de furtos? Foi precisamente a falta de carteira de
identidade que, em toda a parte, ocasionou dificuldades ao último proprietário,
Margarida de Charny, quando o levou para Chimay, na Bélgica. Deste modo, após
numerosas peregrinações, em 1452, ela o haveria de doar a Ana de Lusignan,
esposa do dique de Saboia.
Foi assim que chegou a Chambéry e tornou-se o que é ainda
hoje, propriedade da casa de Saboia, até há pouco reinante na Itália. Queira
Deus que chegue um dia a seu porto de destino natural, às mãos do Sumo
Pontífice, sucessor de São Pedro e Vigário de Jesus Cristo, o único homem no
mundo que tem verdadeiros direitos sobre esta relíquia!
A história do Santo Sudário torna-se daí para cá bastante
conhecida. O duque de Saboia mandou-lhe construir uma “Santa Capela” em
Chambéry. Sucedem-se as exposições e fazem-no ferver no óleo e lavaram-no com
sabão, várias vezes, sem poder apagar suas impressões. Ideia assombrosa, se é
que a crônica é verídica, mas que supões uma decidida e fera vontade de
certeza.
Como se os homens não bastassem, irrompeu um incêndio na
Santa Capela, em 1532, que por pouco não destruiu a relíquia. Uma gota de prata
derretida queimou um canto do tecido, dobrado em seu relicário, causando-lhe
assim duas séries de abrasamentos que encontramos a intervalos regulares.
Felizmente os buracos ficaram dos lados da impressão central. A água empregada
para extinguir o incêndio deixou largos círculos simétricos em toda a extensão
do Sudário. Foi este o segundo incêndio depois do segundo furto.
Pelo menos um feliz resultado obteve-se daí: a devassa
canônica para estabelecer a autenticidade do Sudário danificado, e sua
reparação pelas Clarissas de Chambéry, que foi acompanhada de processo-verbal
descritivo e minucioso, feito por essas virtuosas moças.
O Sudário ainda peregrinou bastante, seguindo as
vicissitudes políticas de seu proprietário, chegando, finalmente, em 1578, a
Turim, onde São Carlos Borromeu o venerou. Emitira o voto de ir a Chambéry, mas
o duque de Saboia poupou-lhe a travessia dos Alpes, de modo que só teve de ir a
pé de Milão a Turim.
Foi, depois, colocado na Santa Capela, anexada à catedral de
São João, na mesma cidade de Turim, onde muito raramente é exposta, dependendo
isto de permissão especial da Casa de Saboia, que não é nada pródiga. As
últimas foram em 1898 (primeira fotografia), 1931 e 1933. Esta última foi
obtida em razão do centenário tradicional da morte de Jesus (mas provavelmente
inexato).
Trecho extraído do livro “A
Paixão de Cristo segundo o Cirurgião”, de Dr. Pierre Barbet
Barbet, P. A Paixão de Cristo
segundo o Cirurgião. Trad. Pe. José Alberto de Castro Pinto.12ª edição. Ed.
Loyola e Ed. Cléofas, São Paulo, 2014.
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Na verdade não era "repugnancia" ao objeto que teve contato com um morto, era a proibição disso claramente no antigo testamento. É porisso que dobraram de modo a ficar visível somente o rosto d colocaram num bastidor que escondia o restante do tecido. É suspeito o lance do véu de Verônica porque essa versão foi feita pelos próprios apóstolos para dar a idéia de que o pano teve contato com Jesus ainda vivo. O comentarista de agora não é realista porque ninguém, nenh discípulo na época pensava em Jesus como "homem-Deus". Deve ter sido a divina Providencia que,mediante seus anjos protegeu o pano pois está muito claro, pelo menos para mim, que este fato se deve a que o Senhor quis deixar o seu retrato para a humanicade. E essa humanidade procura todos os meios para negar a autenticidade deste retrato e não consegue. Verônica é nome tipicamente romano e é suspeito no ambiente histórico relatado. O que parece fraude é o véu de Verônica e não o sudário. Deste há um documento onde se lê "Sudarium Domini quod in sepulchro super capuT ipsius fueraT posiTum" com os Tês maiúsculos de uso dos cristãos de Roma.
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