Uma das maiores
vocações da História da Igreja, o fundador da Ordem Franciscana recebeu os
estigmas do Redentor e tornou-se um sustentáculo da Igreja universal; modelo de
despojamento total, não desprezava os ricos; possuía a alegria que deriva da
pureza do coração e da constância na oração São Francisco de Assis, um dos
santos mais populares do mundo, marcou profundamente não só a vida da Igreja,
mas também a sociedade temporal de sua época. Comemoramos sua festa no dia 4
deste mês.
Poucos santos
exerceram uma influência tão determinante na história civil e eclesiástica de
seu tempo como o Poverello de
Assis. E poucos terão levado as máximas evangélicas tão longe quanto esse homem
que se identificou tanto com Nosso Senhor Jesus Cristo crucificado, que mereceu
receber em seu corpo os sagrados estigmas da Paixão.
Francisco nasceu em (5 de
julho) 1182 na pequena e poética cidade de Assis, situada nos
Apeninos. Seu pai foi Pedro Bernardone - que se tornará famoso por sua usura e
cegueira em relação ao filho - e sua mãe uma dama de origem francesa, de nobre
sangue e grande virtude, chamada Pica. Narra uma lenda que esta, sentindo as
dores do parto, não conseguia dar à luz, até que se trasladou à estrebaria da
casa, nascendo assim Francisco, à semelhança do Salvador, sobre a palha, entre
o asno e o boi.
Alegre,
esbanjador, mas temente a Deus
Nada sabemos da
infância do Santo. Na Legenda de São
Francisco (ou Dos Três Amigos),
escrita por três de seus primeiros discípulos, lemos: “Já crescido, como era dotado de inteligência viva, dispôs-se a
continuar o ofício paterno, isto é, a mercancia, porém com outros
entendimentos, pois ele era muito mais alegre e liberal do que o pai: gostava
de andar em festiva companhia, quer durante o dia quer durante a noite, pelas
estradas de Assis, em divertimentos e cantos, e era tão grande esbanjador, que
gastava em reuniões e banquetes tudo quanto ganhava” 1. Ao
que acrescenta São Boaventura, terceiro geral dos franciscanos, contemporâneo e
póstero do Poverello: “Mas, com o auxílio divino, jamais se deixou
levar pelo ardor das paixões que dominavam os jovens de sua companhia” 2.
O próprio Francisco
confessa: “Eu verdadeiramente creio
nunca haver, por graça de Deus, cometido falta sem ter feito disso expiação,
confessando o meu pecado e arrependendo-me da minha culpa” 3.
Alegre, jovial, desprendido, gentil, afável, “o Senhor incutia em seu coração um sentimento de piedade que o tornava
generoso com os pobres. Este sentimento foi crescendo em seu coração; e
impregnou-o de tanta bondade, que ele decidiu, como ouvinte atento que era do
Evangelho, ser generoso com quem lhe pedisse esmola, sobretudo a quem pedisse
por amor de Deus” 4, de modo a dar até parte de seu
vestuário, se não tivesse mais dinheiro.
A popularidade que
Francisco adquirira até então entre seus conterrâneos devia-se mais às suas
qualidades morais que às físicas, pois “era
pequeno e de aspecto miserável” 5, atraindo pouco a atenção
daqueles que não o conheciam.
“Despreza o que
amaste” entrega à Dama Pobreza
Levava ele essa
alegre e despreocupada vida, quando teve as primeiras revelações divinas que o
chamavam para uma vida mais elevada. Rezando um dia na igreja de São Damião,
ouviu o Crucificado pedir-lhe que restaurasse Sua casa, que estava em ruínas. Tomando
as palavras literalmente, empenhou-se na reforma não só desse templo, mas de
dois outros mais. O Divino Redentor, porém, pediu que sobretudo restaurasse não
os edifícios das igrejas, mas a própria Igreja enquanto instituição. Mas
disse-lhe o Salvador: “Se queres
conhecer minha vontade, precisas desprezar todas as coisas que até aqui
materialmente amaste e desejaste. Quando tiveres feito isto, ser-te-á agradável
tudo quanto te é insuportável e se tornará insuportável tudo quanto desejas”
6.
Foi então que
interveio Pedro Bernardone, pois o filho dava de esmola tudo o que tinha e
passou a levar uma vida considerada insensata pelo mundo. Ocorreu nessa época o
conhecido episódio de o pai apelar ao Bispo para fazer cessar as “extravagâncias” do filho; este se
apressa em despojar-se até da roupa do corpo, para satisfazer a ganância do
pai. Depois disso Francisco entregou-se inteiramente ao que chamou a Dama Pobreza, seguindo ao pé da letra
os conselhos do Evangelho.
Fundação dos
Frades Menores
“Como outro Elias, começou Francisco a anunciar a verdade, no pleno
ardor do Espírito de Cristo. Convidou outros a se associarem a ele na busca da
perfeita santidade, insistindo para que levassem uma vida de penitência.
Começaram alguns a praticar a penitência, e em seguida se associaram a ele,
partilhando a mesma vida, usando vestes vis. O humilde Francisco decidiu que
eles se chamariam Frades Menores” 7.
Surgiram assim os
primeiros 12 discípulos que, segundo registram os Fioretti, “foram homens
de tão grande santidade que, desde os Apóstolos até hoje, não viu o mundo
homens tão maravilhosos e santos” 8. “Aqueles que vinham abraçar esta vida distribuíam aos pobres tudo o que
tinham. Contentavam-se só com uma túnica, uma corda e um par de calções, e não
queriam mais”, dirá mais tarde Francisco em seu Testamento 9.
Os novos apóstolos
reuniram-se em torno da pequena igreja da Porciúncula, ou Santa Maria dos Anjos, que passou a ser o berço
da Ordem.
O Santo sustém a
Igreja Católica
Para obter a
aprovação de sua incipiente Ordem, Francisco dirigiu-se a Roma. E o Senhor era
com ele, pois, pouco antes de chegar, e para preparar-lhe o terreno, “o Pontífice Romano viu em sonho a basílica
de Latrão, prestes a ruir; mas um pobrezinho, homem pequeno e de aspecto
miserável, sustentava-a com seus ombros, impedindo que ruísse” 10.
Quando o Sumo Pontífice viu em sua presença o Poverello de Assis, reconheceu-o, abraçou-o, e disse a ele e a
seus companheiros: “Irmãos, ide com
Deus e pregai a penitência, segundo vos será inspirada. Quando tiverdes
crescido em número e o Senhor aumentado suas graças a vosso favor, tornai a
nós, que vos concederemos o que desejardes e ainda mais” 11.
Munidos dessa
aprovação pontifícia, os novos religiosos saíram para pregar, em duplas,
percorrendo as cidades da região e mostrando aos seus habitantes, pela palavra
e pelo exemplo, o caminho da salvação.
Espírito e força
de Elias
Certa noite os
frades viram um carro de fogo de um esplendor maravilhoso, com um globo brilhante,
parecido com o sol, entrar pelo aposento em que estavam, dando três voltas no
recinto. Compreenderam que Deus quisera mostrar-lhes, por aquela figura, “que seu pai Francisco viera ‘no espírito e
na força de Elias’. Desde então
[Francisco] penetrava os segredos de
seus corações, predizia o futuro e realizava milagres. Estava patente para
todos que o espírito de Elias, duas vezes mais poderoso, viera habitar nele com
tal plenitude, que o mais seguro para todos era seguir sua vida e ensinamentos”
12.
Francisco
manifestava seu amor a Deus por uma alegria imensa, que se expressava muitas
vezes em cânticos ardorosos. A quem lhe perguntava qual a razão de tal alegria,
respondia que “ela deriva da pureza do
coração e da constância na oração”.
Essa divina loucura
da cruz, que assomou Francisco e lhe angariou muitos discípulos, devia atrair
também uma jovem, filha do Conde de Sasso Rosso, Clara, de 17 anos. Desde o momento em que ouviu o Pobrezinho pregar, compreendeu que a
vida que ele indicava era a que Deus queria para ela. Francisco tornou-se seu
guia e pai espiritual de sua alma.
Como os pais tinham
outros planos para Clara, foi preciso que ela fugisse para a igrejinha da Porciúncula, onde Francisco
cortou-lhe os cabelos e fê-la vestir um simples hábito. Nascia assim a Ordem
Segunda dos Franciscanos, a das Clarissas. Duas semanas depois, Inês, irmã de
Clara, a seguia no claustro, e mais tarde uma terceira, Beatriz.
Não desprezar os
ricos
Apesar de pregar
sobretudo aos pobres e com eles identificar-se, “Francisco tinha o hábito de alertar seus discípulos, exortando-os a
não condenar e não desprezar ‘aqueles que viviam na opulência e vestiam com
luxo’. Dizia que ‘também esses
têm a Deus por senhor, e que Deus pode, quando quer, chamá-los, como aos
outros, e torná-los justos e santos’” 13. Um desses nobres
deu ao Poverello o Monte
Alverne, onde ele receberia a maior graça de sua vida.
Encontro de dois
homens providenciais
Em 1217, indo a
Roma, Francisco encontrou-se com outro luminar da Igreja da época, Domingos de
Gusmão, que também havia fundado uma Ordem religiosa para combater a decadência
dos costumes. Os dois santos se abraçaram, estabelecendo uma amizade
solidificada pelo amor de Deus.
Pouco depois
Francisco recebia em sua Ordem um dos que seriam sua maior glória e se tornaria
um dos santos mais populares do mundo, Frei Antônio de Lisboa - mais tarde,
também
- “de Pádua”.
Dissabores e
fundação da Ordem Terceira
Uma das maiores
dores de Francisco foi ver surgir uma nova tendência entre seus frades,
chefiada pelo Superior Frei Elias, que dava uma orientação diferente da do
Santo, principalmente em relação aos estudos e ao modo de se observar a
pobreza. Francisco chegou a amaldiçoar Frei Pedro de Stacia, um dos frades da
nova tendência.
Por outro lado, eram tantos os leigos que, ligados pelos laços do
matrimônio ou com outros encargos terrenos, não podiam observar inteiramente as
regras franciscanas, mas queriam pertencer à sua família de almas, que
Francisco fundou uma Ordem Terceira para abranger a todos. Muitos grandes
personagens - como São Luís, Rei de França, e Santa Isabel, Duquesa da Turíngia
- a ela pertenceram.
Recepção dos
estigmas
Dois anos antes de
sua morte, tendo Francisco ido ao Monte Alverne em companhia de alguns de seus
frades mais íntimos, pôs-se em oração fervorosa e foi objeto de uma graça
insigne. Na figura de um serafim de seis asas apareceu-lhe Nosso Senhor
crucificado que, depois de entreter-se com ele em doce colóquio, partiu
deixando-lhe impressos no corpo os sagrados estigmas da Paixão. Assim, esse
discípulo de Cristo, que tanto desejara assemelhar-se a Ele, obteve mais este
traço de similitude com o Divino Salvador.
Cantando os
louvores da “Irmã Morte”
Em sua última
doença, e já próximo à morte, queria Francisco que Frei Ângelo e Frei Leão
permanecessem junto a seu leito para cantar os louvores da “Irmã Morte”. Àqueles que se
escandalizavam com essa atitude, respondia: “Por graça do Espírito Santo, sinto-me tão profundamente unido ao meu
Senhor Deus, que não posso deixar de me alegrar nEle” 14.
“Por fim, tendo-se realizado nele todos os planos de Deus, o
bem-aventurado adormeceu no Senhor, rezando e cantando um Salmo” 15, no dia 4
de outubro de 1226, aos 45 anos, sendo canonizado apenas dois anos
depois. (16 de Julho de 1228 pelo Papa Gregório IX)
ORAÇÃO:
Senhor! Fazei de mim um instrumento da vossa paz. Onde houver ódio, que
eu leve o amor. Onde houver ofensa, que eu leve o perdão. Onde houver discórdia,
que eu leve a união. Onde houver dúvidas, que eu leve a fé. Onde houver erro,
que eu leve a verdade. Onde houver desespero, que eu leve a esperança. Onde
houver tristeza, que eu leve a alegria. Onde houver trevas, que eu leve a luz. Ó
Mestre, fazei que eu procure mais: consolar, que ser consolado; compreender,
que ser compreendido; amar, que ser amado. Pois é dando que se recebe. É
perdoando que se é perdoado. E é morrendo que se vive para a vida eterna. Amém!
Comece
fazendo o que é necessário, depois o que é possível, e de repente você estará
fazendo o impossível.
(São Francisco de Assis)
Notas:
1.
Legenda de São Francisco, escrita pelos três
humildes irmãos franciscanos Leone, Rufino e Angelo, no Ano da graça de 1246”,
transcrição livre de Brasil Bandecchi, São Paulo, 1957, p. 13.
2.
São Boaventura, Legenda Maior e
Legenda Menor — Vida de São Francisco de Assis, Vozes, 1979, p. 21.
3.
Specumlum Perfectionis, in Johannes Joergensen, São Francisco de Assis, Vozes, 1957,
p. 316, nota 345.
4.
São Boaventura, id, ib.
5.
Id. ib., p. 174.
6.
Legenda de São Francisco, p. 25.
7.
São Boaventura, op. cit., p. 173.
8.
Las Florecillas, Zeus, Madrid, 1963, p. 22.
9.
Joergensen, op. cit., p. 137.
10.
São Boaventura, op. cit., p. 174.
11.
Legenda de São Francisco, pp. 66,67.
12.
São Boaventura, id., p. 175.
13.
Joergensen, op. cit., p. 216.
14.
Id. ib., p. 393.
15.
São Boaventura, op. cit., p. 200.
Fonte:
Revista Catolicismo
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Ricardo Feitosa e
Marta Lúcia
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