A paz como dom de Deus em Jesus Cristo
1. Estamos em paz com Deus!
Se pudéssemos ouvir o grito mais forte que existe no coração
de bilhões de pessoas, ouviríamos, em todas as línguas do mundo, uma única
palavra: paz! A dolorosa atualidade deste tema, junto com a necessidade de se
devolver à palavra “paz” a riqueza e a profundidade de significado de que ela
se reveste na Bíblia, me levou a dedicar a este tema as meditações de Advento
deste ano. Ela nos ajudará, espero eu, a escutar com ouvidos novos o anúncio
natalino, “Paz na terra aos homens que Deus ama”, e a começar a viver em nosso
interior a mensagem que a Igreja, todos os anos, apresenta ao mundo na jornada
mundial da paz.
Comecemos ouvindo o anúncio fundamental da paz. São palavras
de Paulo na Carta aos Romanos: “Justificados, pois, pela fé, estamos em paz com Deus por
meio de Jesus Cristo, nosso Senhor, mediante o qual também tivemos, pela fé, o
acesso a esta graça em que estamos firmes; e nos gloriamos na esperança da
glória de Deus” (Rm 5,1-2).
Eu ainda me lembro do que aconteceu no dia em que acabou,
para a Itália, a segunda guerra mundial. Os gritos de “Armistício! Paz!”
ribombaram da cidade ao campo, de casa em casa. Era o fim de um pesadelo: basta
de terror, basta de bombardeios, basta de fome. Parecia que finalmente se
voltava a viver. Algo assim deve ter sido provocado, no coração dos leitores,
por aquele anúncio do Apóstolo: “Nós estamos em paz com Deus! Foi selada a paz!
Uma era nova começou para a humanidade na sua relação com Deus!”. A época deles
já foi definida como “de angústia”[1]. Os homens daquele tempo tinham a
impressão (nada infundada, aliás) de que uma condenação pesava sobre a sua
cabeça; Paulo a chamava de “cólera de Deus que se revela do céu contra toda
impiedade” (Rm 1,18). Daí os ritos e cultos esotéricos de propiciação que
pululavam na sociedade pagã daquele tempo.
Quando falamos de paz, somos levados a pensar quase sempre
numa paz horizontal: entre os povos, entre as raças, entre as classes sociais,
entre as religiões. A palavra de Deus nos ensina que a paz primeira e mais
essencial é a vertical, entre o céu e a terra, entre Deus e a humanidade. Dela
dependem todas as outras formas de paz. Isto nós vemos no próprio relato da
criação. Enquanto Adão e Eva estão em paz com Deus, há paz dentro de cada um
deles, entre a carne e o espírito (estavam nus e não se envergonhavam), há paz
entre o homem e a mulher (“carne da minha carne”), entre o ser humano e o resto
da criação. Tão logo eles se rebelam contra Deus, tudo se transforma em luta: a
carne contra o espírito (eles se dão conta de estarem nus), o homem contra a
mulher (“a mulher me seduziu”), a natureza contra o homem, o irmão contra o
irmão, Caim contra Abel.
Por este motivo, pensei em dedicar esta primeira meditação à
paz como dom de Deus em Cristo Jesus. Na segunda meditação, falaremos da paz
como tarefa pela qual trabalhar e, na terceira, da paz como fruto do Espírito,
ou seja, da paz interior da alma. São os três âmbitos da paz evocados num hino
da liturgia das horas: “Paz entre céu e terra, paz entre todos os povos, paz em
nossos corações”[2].
2. A
paz de Deus, prometida e dada
O anúncio de Paulo, recém ouvido, pressupõe o acontecimento
de algo que mudou o destino da humanidade. Se agora estamos em paz com Deus,
isto quer dizer que antes não estávamos; se agora “não há mais nenhuma
condenação” (Rm 8,1), quer dizer que antes havia uma condenação. Vejamos o que
foi que provocou uma mudança tão decisiva na relação entre o homem e Deus.
Diante da rebelião do homem – o pecado original – Deus não
abandona a humanidade ao seu azar, mas decide um novo plano para reconciliá-la
consigo. Uma comparação trivial, mas útil para entendermos, pode ser feita com
os chamados sistemas de navegação por satélite, instalados hoje nos carros. Se
em algum momento o motorista não segue a indicação do navegador, fazendo uma
conversão à esquerda, por exemplo, em vez de à direita, o navegador em poucos
instantes lhe traça uma nova rota, a partir da posição em que ele está
localizado, para chegar ao destino desejado. Foi isto o que Deus fez em relação
ao homem, decidindo, depois do pecado, o seu plano de redenção.
A longa preparação começa com as alianças bíblicas. Elas
são, por assim dizer, “acordos de paz separados”. Primeiro com indivíduos: Noé,
Abraão, Jacó; depois, por meio de Moisés, com todo Israel, que se torna o povo
da aliança. Essas alianças, ao contrário das humanas, são sempre alianças de
paz, nunca de guerra contra inimigos.
Mas Deus é Deus de toda a humanidade: “Acaso Deus é Deus
somente dos judeus? Não é Deus também dos gentios?”, exclama São Paulo (Rm
3,29). Estas alianças antigas eram temporárias, destinadas a ser prorrogadas um
dia para todo o gênero humano. De fato, os profetas começaram a falar cada vez
mais claramente de uma “aliança nova e eterna”, de uma “aliança de paz” (Ez
37,26), que, a partir de Sião e de Jerusalém, se estenderá a todos os povos
(cf. Is 2,2-5).
Esta paz universal é apresentada como um retorno à paz
inicial do Éden, com imagens e símbolos que a tradição judaica interpreta em
sentido literal e a cristã em sentido espiritual: “De suas espadas forjarão
relhas de arados, e de suas lanças, foices. Uma nação não levantará a espada
contra outra, e não se arrastarão mais para a guerra” (Is 2,4). “O lobo
habitará com o cordeiro, a pantera se deitará junto ao cabrito; o bezerro e o
leãozinho pastarão juntos e um menino pequeno os guiará” (Is 11,6-7).
O Novo Testamento vê realizadas todas essas profecias com a
vinda de Jesus. Seu nascimento é revelado aos pastores com o anúncio: “Paz na
terra aos homens que Deus ama!” (Lc 2,14). O próprio Jesus diz que veio ao
mundo para trazer a paz de Deus: “Eu vos deixo a paz; eu vos dou a minha paz”
(Jo 14,27). Na noite de Páscoa, no cenáculo, sabe-se lá com que divinas
vibrações, sai da sua boca de ressuscitado a palavra “shalom!”, “a paz esteja
convosco!”. Como no anúncio dos anjos no Natal, este não é apenas um cumprimento
ou um augúrio, mas algo real, algo que é transmitido. Todo o conteúdo da
redenção estava contido naquela palavra.
A Igreja apostólica nunca se cansa de proclamar o
cumprimento, em Cristo, de todas as promessas de paz feitas por Deus. Falando
do Messias que nasceria em Belém da Judeia, o profeta Miqueias tinha predito:
“Ele será a nossa paz!” (Mi 5,4); exatamente o que a Carta aos Efésios diz de
Cristo: “Ele é a nossa paz” (Ef 2,14). “O Natal do Senhor”, diz São Leão Magno,
“é o natal da paz”[3].
3. A paz, fruto da cruz de Cristo
Coloquemos agora uma pergunta mais precisa. Foi com a sua
simples vinda à terra que Jesus restaurou a paz entre o céu e a terra? É
realmente o nascimento de Cristo “o natal da paz” ou é também, e acima de tudo,
a sua morte? A resposta se encontra na palavra de Paulo da qual partimos:
“Sendo, pois, justificados pela fé, estamos em paz com Deus por meio de Jesus
Cristo, nosso Senhor” (Rm 5,1). A paz vem da justificação pela fé e a
justificação vem do sacrifício de Cristo na cruz (cf. Rm 3,21-26)!
Além disso, a paz é o próprio conteúdo da justificação. Esta
não consiste apenas na remissão (ou, de acordo com Lutero, na não imputação)
dos pecados, isto é, em algo puramente negativo, um “remover” algo que havia;
ela envolve também e acima de tudo um elemento positivo, uma colocação de algo
que não havia: o Espírito Santo e, com Ele, a graça e a paz.
Uma coisa é clara: não se entende a mudança radical ocorrida
no relacionamento com Deus se não se entende o que aconteceu na morte de
Cristo. Oriente e Ocidente são unânimes em descrever a situação da humanidade
antes de Cristo e fora de Cristo. Por um lado, havia os homens que, pecando,
tinham contraído com Deus uma dívida e precisavam lutar contra o demônio que os
mantinha escravos: situações, estas, que eles não podiam resolver, sendo a
dívida infinita e eles prisioneiros de Satanás, de quem tinham de se livrar.
Por outro lado, Deus podia expiar o pecado e vencer Satanás, mas não devia
fazê-lo, não era obrigado a fazê-lo, já que não era Ele o devedor. Tinha de ser
alguém que unificasse em si mesmo o combatente e o capaz de vencer: é o caso de
Cristo, Deus e homem. Assim se expressam, com termos muito parecidos, Nicolau
Cabasilas, entre os gregos, e Santo Anselmo de Aosta, entre os latinos[4].
A morte de Jesus na cruz é o momento em que o Redentor
cumpre a obra da redenção, destruindo o pecado e derrotando Satanás. Como
homem, aquilo que Ele realiza nos pertence: “Cristo Jesus foi feito por Deus,
para nós, sabedoria, justiça, santificação e redenção” (1 Cor 1,30); para nós!
Por outro lado, como Deus, o que Ele realiza tem valor infinito e pode salvar
“todos aqueles que recorrem a Ele” (Hb 7,25).
Em tempos recentes, tem-se repensado profundamente no
sentido do sacrifício de Cristo. Em 1972, o pensador francês René Girard lançou
a tese que considerava que “a violência é o coração e a alma secreta do
sagrado”[5]. Na origem, de fato, e no centro de toda religião, incluída a
hebraica, está o sacrifício, o rito do bode expiatório que sempre envolve
destruição e morte. Já antes dessa data, porém, aquele estudioso tinha se
reaproximado do cristianismo e, na Páscoa de 1959, tinha tornado pública a sua
“conversão”, declarando-se crente e retornando à Igreja.
Isto lhe permitiu não ficar apenas, em seus estudos
posteriores, na análise do mecanismo da violência, mas salientar também a forma
de sair dele. A seu ver, Jesus desmascara e despedaça o mecanismo que sacraliza
a violência tornando-se o voluntário “bode expiatório” da humanidade, a vítima inocente
de toda a violência. Cristo, já dizia a Carta aos Hebreus (Hb 9,11-14), não
veio com o sangue dos outros, mas com o próprio. Não fez vítimas, mas fez-se
vítima. Não colocou os seus pecados sobre os ombros dos outros, homens ou
animais; colocou, sim, os pecados dos outros sobre os próprios ombros: “Ele
tomou sobre si os nossos pecados no madeiro da cruz” (1Pd 2,24).
Pode-se então continuar falando sobre o “sacrifício” da cruz
e, por conseguinte, da missa como sacrifício? Durante muito tempo, o estudioso
mencionado rejeitou este conceito, considerando-o marcado demais pela ideia de
violência, mas, depois, com toda a tradição cristã, acabou admitindo a sua
legitimidade, desde que, afirma ele, se veja no de Cristo um novo tipo de
sacrifício e se perceba nesta mudança de significado “o fato central da
história religiosa da humanidade”[6].
Tudo isto nos permite entender melhor em que sentido
aconteceu na cruz a reconciliação entre Deus e os homens. Em geral, o
sacrifício de expiação servia para aplacar um Deus enfurecido com o pecado. O
homem, oferecendo a Deus um sacrifício, pede à divindade a reconciliação e o
perdão. No sacrifício de Cristo, a perspectiva é invertida. Não é o homem quem
exerce uma influência sobre Deus para que Ele se aplaque. Antes, é Deus quem
age para que o homem desista da própria inimizade com Ele. “A salvação não
começa com o pedido de reconciliação do homem, mas com o pedido de Deus de nos
reconciliarmos com Ele”[7]. Neste sentido, entende-se a afirmação do Apóstolo:
“É Deus quem reconciliou consigo o mundo em Cristo” (cf. 2Cor 5,19), e ainda:
“Sendo inimigos, fomos reconciliados com Deus mediante a morte do seu Filho”
(Rm 5,10).
4. “Recebei o Espírito Santo!”
A paz que Cristo nos mereceu com a sua morte na cruz se
torna ativa e operante em nós mediante o Espírito Santo. Por isto, no cenáculo,
depois de ter dito aos apóstolos “Paz a vós”, Ele soprou sobre eles e
acrescentou, como de um só fôlego: “Recebei o Espírito Santo!” (Jo 20,22).
Em realidade, a paz vem, sim, da cruz de Cristo, mas não
nasce dela. Nasce de mais longe. Na cruz, Jesus destruiu o muro do pecado e da
inimizade que impedia a paz de Deus de se difundir entre os homens. A fonte
suprema da paz é a Trindade. “Ó Trindade beata, oceano de paz!”, exclama a
liturgia em um dos seus hinos. Segundo Dionísio Areopagita, “Paz” é um dos
nomes próprios de Deus[8]. Ele é paz em si mesmo, como é também amor e luz.
Quase todas as religiões politeístas falam de divindades em
permanente estado de rivalidade e de guerra entre si. A mitologia grega é o
exemplo mais conhecido. A rigor, não se pode falar de Deus como fonte e modelo
de paz, nem mesmo no contexto de um monoteísmo absoluto e numérico. A paz,
assim como o amor, não pode existir a não ser entre duas pessoas. Ela consiste
em relações de beleza, em relações de amor, e a Santíssima Trindade é
precisamente essa beleza e perfeição de relações. O mais impressionante, quando
contemplamos o ícone da Trindade de Rublev, é a sensação de paz sobre-humana
que emana dele.
Quando Jesus diz “shalom” e “Recebei o Espírito Santo”, Ele
comunica aos discípulos algo da “paz de Deus que excede todo entendimento” (Fl
4,7). Neste sentido, a paz é quase um sinônimo de graça e, de fato, os dois
termos são usados em conjunto, como uma espécie de binômio, no início das
cartas apostólicas: “Graça e paz a vós da parte de Deus e de nosso Senhor Jesus
Cristo” (Rm 1,7; 1Tes 1,1). Quando se proclama na missa “A paz esteja
convosco”, “Cordeiro de Deus, que tirais os pecados do mundo, dai-nos a paz” e,
no final, “Ide em paz”, é desta paz, como dom de Deus, que se está falando.
5. “Reconciliai-vos com Deus!”
Gostaria de destacar agora como este dom da paz, recebido
ontologicamente e de direito por meio do batismo, deve mudar pouco a pouco,
também de fato e psicologicamente, a nossa relação com Deus. O premente apelo
de Paulo, “Suplicamo-vos em nome de Cristo: deixai-vos reconciliar com Deus”
(2Cor 5,20), é dirigido aos cristãos batizados que vivem há tempos na
comunidade. Não se refere, portanto, à primeira reconciliação, nem,
evidentemente, ao que chamamos de “sacramento da reconciliação”. Neste sentido
atual e existencial, ele é dirigido também a cada um de nós, que tentamos
entender em que ele consiste.
Uma das razões, talvez a principal, da alienação da religião
e da fé por parte do homem moderno é a imagem distorcida que ele tem de Deus.
Esta é também a causa de um cristianismo apagado, sem impulso e sem alegria,
vivido mais como um dever do que como um presente. Eu penso no quanto era
grandiosa a imagem de Deus Pai na Capela Sistina quando a vi pela primeira vez,
toda recoberta por uma pátina escura, e como é agora, após a restauração, com
as cores vivazes e os contornos nítidos com que tinha saído do pincel de
Michelangelo. Uma restauração mais urgente da imagem de Deus Pai deve acontecer
no coração dos homens, incluídos nós, os crentes.
Qual é a imagem “predefinida” de Deus (na linguagem dos computadores,
de funcionar como um padrão) no inconsciente coletivo humano? Basta, para
descobrirmos, perguntar a nós mesmos e aos outros: “Que ideias, que palavras,
que realidades surgem espontaneamente em mim, antes de qualquer reflexão,
quando digo ‘Pai nosso, que estais no céu… Seja feita a vossa vontade’”?
Inconscientemente, associamos a vontade de Deus a tudo o que é desagradável,
doloroso, àquilo que, de uma forma ou de outra, pode ser visto como uma
mutilação da liberdade e do desenvolvimento individual. É como se Deus, de
certa forma, fosse o inimigo de toda festa, alegria, prazer.
Outra pergunta reveladora: o que é que sugere para nós a
invocação “Kyrie eleison”, “Senhor, tende piedade de nós”, que pontua a oração
cristã e, em algumas liturgias, acompanha a missa do início ao fim? Ela acabou
se tornando apenas o pedido de perdão da criatura que vê Deus sempre no
processo (e no direito) de puni-la. A palavra “piedade” foi tão aviltada a
ponto de ser usada frequentemente em sentido negativo, como algo mesquinho e
desprezível: “causar piedade” como sinônimo de “dar pena”, “causar vergonha
alheia”. De acordo com a Bíblia, “Kyrie eleison” deve ser traduzido como
“Senhor, cobri-nos com a vossa ternura!”. Basta ler como Deus fala do seu povo
em Jeremias: “Meu coração se comove com ele e sinto por ele uma profunda
ternura” (eleos) (Jr 31,20). Quando os doentes, os leprosos e os cegos gritam
para Jesus, como em Mateus 9,27, “Senhor, tem piedade (eleeson) de mim!”, eles
não querem dizer “Perdoa-me”, e sim “Tem compaixão de mim”.
Deus é visto, geralmente, como o Ser Supremo, o
Todo-Poderoso, o Senhor do tempo e da história, ou seja, como uma entidade que
se impõe ao indivíduo a partir de fora; nenhum detalhe da vida humana lhe
escapa. A transgressão da sua lei introduz inexoravelmente uma desordem que
exige reparação. Não podendo, esta reparação, ser jamais considerada adequada,
surge a angústia da morte e do julgamento divino.
Eu confesso que quase estremeço ao ler as palavras que o
grande Bossuet dirige a Jesus na cruz, num discurso da sexta-feira Santa:
“Lanças-te, Jesus, nos braços do Pai, e te sentes rejeitado; sentes que é Ele
próprio quem te persegue, quem te golpeia, quem te abandona; que é Ele próprio
que te esmaga sob o peso enorme e insuportável da sua vingança… A cólera de um
Deus enfurecido: Jesus reza e o Pai, irado, não o escuta; é a justiça de um
Deus vingador perante as ofensas recebidas; Jesus sofre e o Pai não se
aplaca!”[9]. Se assim falava um orador do alto nível de Bossuet, podemos
imaginar a que tipo de coisa se abandonavam os pregadores populares daquele
tempo. Entende-se, assim, como foi se formando aquela imagem “predefinida” de
Deus no coração do homem.
É claro que nunca se ignorou a misericórdia de Deus! Mas a
ela foi confiada apenas a tarefa de moderar os irrenunciáveis rigores da
justiça. Aliás, na prática, fez-se com que o amor e o perdão de Deus
dependessem do amor e do perdão que damos ao próximo: se perdoarmos a quem nos
ofendeu, então Deus poderá, por sua vez, nos perdoar também. Criou-se com Deus
um relacionamento de barganha. Não se diz que é preciso acumular méritos para
ganhar o Paraíso? E não se atribui grande importância aos esforços a ser
feitos, às missas a mandar rezar, às velas a ser acesas, às novenas a realizar?
Tudo isso, que permitiu no passado a muita gente demonstrar
a Deus o próprio amor, não pode ser jogado fora: deve ser respeitado. Deus faz
desabrocharem as suas flores – e os seus santos – em qualquer clima. Não há
como negar, porém, o risco de se cair numa religião utilitária, no “do ut des”,
“dou para que dês”. Por trás de tudo está o pressuposto de que a relação com
Deus depende do homem. Ele não pode se apresentar diante de Deus de mãos
vazias: deve ter sempre algo a lhe dar. E é verdade que Deus diz a Moisés:
“Ninguém se apresentará diante de mim com as mãos vazias” (Ex 23,15; 34,20),
mas este é o Deus da lei, não ainda o Deus da graça. No reino da graça, o homem
deve se apresentar diante de Deus justamente “de mãos vazias”; a única coisa
que ele precisa trazer “nas mãos”, ao se apresentar a Ele, é o seu Filho Jesus.
Vejamos como o Espírito Santo, quando nos abrimos a Ele,
transforma esta situação. Ele nos ensina a olhar para Deus com olhos novos:
como o Deus da lei, é claro, mas, ainda mais, como o Deus do amor e da graça,
como o Deus “misericordioso e compassivo; lento à ira e grande no amor” (Ex
34,6). Ele nos revela Deus como um aliado e amigo, como quem “não poupou o
próprio Filho, mas o entregou por todos nós” (é assim que deve ser entendida a
passagem de Rm 8,32); em suma, como um Pai de imensa ternura. Aflora então o
sentimento filial que se traduz espontaneamente no grito: “Abba, Pai!”. Como
quem diz: “Eu não te conhecia, ou só te conhecia por ouvir dizer; agora te
conheço, sei quem és; sei que me amas de verdade e que me és propício”. O filho
tomou o lugar do escravo; o amor, o lugar do medo. É assim que se chega
verdadeiramente à reconciliação com Deus, inclusive no âmbito subjetivo e
existencial.
Repitamos nós também, de tanto em tanto, com a íntima
alegria e a jubilosa certeza do Apóstolo: “Justificados pela fé, estamos em paz com Deus!”.
·
[1] E. R. Dodds,
Pagani e cristiani in un’epoca di angoscia. Aspetti dell’esperienza religiosa
da Marco Aurelio a Costantino, Florença, La Nuova Italia 1993.
·
[2] Hino de
louvor do III domingo do tempo comum.
·
[3] São Leão
Magno, In Nativitate Domini, XXXVI, 5 (PL 54, 215).
·
[4] N. Cabasilas,
Vita in Cristo, I, 5 (PG 150, 313); Cf. Anselmo, Cur Deus homo?, II, 18.20;
Tomás de Aquino, Summa theologiae, III, q. 46, art. 1, ad 3.
·
[5] Cf. R. Girard, La violence et le sacré, Grasset,
Paris 1972.
·
[6] Cf. R.
Girard, Il sacrificio, Milão 2004.
·
[7] G. Theissen –
A. Merz; Il Gesú storico, Queriniana, Brescia 2003, pág. 573.
·
[8]
Pseudo-Dionísio Areopagita, Nomes divinos, XI, 1 s (PG 3, 948 s).
·
[9] J.B. Bossuet,
Œuvres complètes, IV, Paris 1836, pág. 365.
Fonte: cantalamessa.org/
Padre Raniero Cantalamessa
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