"DEIXAI-VOS RECONCILIAR
COM DEUS"
"Deus nos reconciliou consigo por meio de Cristo e nos
confiou o ministério da reconciliação [...] Suplicamo-vos em nome de Cristo:
deixai-vos reconciliar com Deus. Aquele que não tinha conhecido o pecado, Deus
o fez pecado por nós, para que nele nos tornássemos justiça de Deus. Posto que
somos seus colaboradores, exortamo-vos a não negligenciar a graça de Deus. Ele,
com efeito, diz: ‘No tempo favorável te ouvi e no dia da salvação te socorri’.
Eis agora o tempo favorável; eis agora o dia da salvação!” (2Cor 5,18; 6,2).
Estas são palavras de São Paulo na Segunda Carta aos
Coríntios. O apelo do apóstolo a reconciliar-se com Deus não se refere à
reconciliação histórica entre Deus e a humanidade (esta, ele acaba de dizer, já
se realizou através de Cristo na cruz); tampouco se refere à reconciliação
sacramental que acontece no batismo e no sacramento da reconciliação; refere-se
a uma reconciliação existencial e pessoal, a ser vivida no presente. O apelo é
dirigido aos cristãos de Corinto que são batizados e vivem há tempo na Igreja;
é dirigido, por isso, também a nós, aqui e agora. “O tempo favorável, o dia da
salvação” é, para nós, o ano da misericórdia que estamos vivendo.
Mas o que significa, em sentido existencial e psicológico,
reconciliar-se com Deus? Uma das razões, talvez a principal, da alienação do
homem moderno da religião e da fé é a imagem distorcida que ele tem de Deus.
Qual é, de fato, a imagem "predefinida" de Deus no inconsciente
humano coletivo? Para descobrir, basta fazer-se esta pergunta: "Que
associação de ideias, que sentimentos e reações surgem em mim, antes de
qualquer reflexão, quando, na oração do pai-nosso, chego às palavras ‘seja
feita a vossa vontade’"?
Quem as diz é como se inclinasse interiormente a cabeça em
resignação, preparando-se para o pior. Inconscientemente, vincula-se a vontade
de Deus com tudo o que é desagradável, doloroso, com aquilo que, de uma forma
ou de outra, pode ser visto como mutilação da liberdade e do desenvolvimento
individual. É um pouco como se Deus fosse o inimigo de toda festa, alegria,
prazer. Um Deus ranzinza e inquisidor.
Deus é visto como o Ser Supremo, o Onipotente, o Senhor do
tempo e da história, isto é, como uma entidade que, de fora, se impõe ao
indivíduo; nenhum particular da vida humana lhe escapa. A transgressão da Sua
lei introduz inexoravelmente uma desordem que exige uma reparação adequada, que
o homem sabe ser incapaz de lhe dar. Daí o medo e, às vezes, um surdo rancor
contra Deus. É um resquício da ideia pagã de Deus, nunca erradicada de todo, e
talvez inerradicável, do coração humano. É nela que se baseia a tragédia grega;
Deus é aquele que intervém, através da punição divina, para restaurar a ordem
perturbada pelo mal.
É claro que nunca foi ignorada, no cristianismo, a
misericórdia de Deus! Mas a ela foi confiada apenas a incumbência de moderar os
rigores irrenunciáveis da justiça. A misericórdia era o expoente, não a base;
a exceção, não a regra. O ano da misericórdia é a oportunidade de ouro para
trazer de volta à luz a verdadeira imagem do Deus bíblico, que não somente tem
misericórdia, mas é misericórdia.
Esta afirmação ousada se baseia no fato de que "Deus é
amor" (1Jo 4,8.16). Só na Trindade Deus é amor sem ser misericórdia. Que o
Pai ame o Filho não é graça ou concessão; é necessidade: Ele precisa amar para
existir como Pai. Que o Filho ame o Pai não é misericórdia ou graça; é
necessidade, mesmo que liberíssima: Ele precisa ser amado e amar para ser
Filho. O mesmo deve ser dito do Espírito Santo, que é o amor feito pessoa.
É quando cria o mundo e, nele, as criaturas livres que o
amor de Deus deixa de ser natureza e se torna graça. Este amor é uma livre
concessão: poderia não existir; é hesed, graça e misericórdia. O pecado do
homem não muda a natureza deste amor, mas provoca nele um salto de qualidade:
da misericórdia como dom se passa à misericórdia como perdão. Do amor de
simples doação se passa para um amor de sofrimento, porque Deus sofre diante da
rejeição ao seu amor. "Eu nutri e criei filhos, diz o Senhor, mas eles se
rebelaram contra mim" (Is 1,2). Perguntemos aos muitos pais e mães que
tiveram essa experiência se isto não é sofrimento, e dos mais amargos da vida.
E o que é da justiça de Deus? É esquecida ou desvalorizada?
A esta pergunta quem respondeu de uma vez por todas foi São Paulo. Ele começa a
sua exposição, na Carta aos Romanos, com uma notícia: "Manifestou-se a
justiça de Deus" (Rm 3,21). Nós nos perguntamos: qual justiça? Aquela que
dá "unicuique suum", a cada um o que é seu, distribuindo prêmios e
castigos de acordo com o mérito? Haverá, é verdade, um tempo em que se
manifestará também essa justiça de Deus, que consiste em dar a cada um segundo
os seus méritos. Deus, de fato, como escreveu pouco antes o Apóstolo, "retribuirá
a cada um segundo as suas obras: a vida eterna aos que, perseverando nas obras
de bem, procuram glória, honra e incorruptibilidade; ira e indignação contra
aqueles que, por rebelião, desobedecem à verdade e obedecem à injustiça"
(Rom 2,6-8).
Mas não é desta justiça que fala o Apóstolo quando escreve
que "se manifestou a justiça de Deus". O primeiro é um evento futuro;
este, um evento em ato, que acontece "agora". Se assim não fosse, a
afirmação de Paulo seria absurda, negada pelos fatos. Do ponto de vista da
justiça retributiva, nada mudou no mundo com a vinda de Cristo. Continuam,
disse Bossuet, a ver-se muitas vezes no trono os culpados e no patíbulo os
inocentes[1]; mas para que não se creia que há no mundo alguma justiça e ordem
fixa, ainda que invertida, eis que às vezes se vê o contrário, ou seja, o
inocente no trono e o culpado no cadafalso. Não é nisto, portanto, que consiste
a novidade trazida por Cristo. Ouçamos o que diz o Apóstolo:
"Todos pecaram e
foram privados da glória de Deus, mas são justificados gratuitamente pela sua
graça, em virtude da redenção realizada por Cristo Jesus. Deus o estabeleceu
como instrumento de expiação por meio da fé, no seu sangue, a fim de manifestar
a sua justiça, depois da tolerância usada para com os pecados passados no tempo
da divina paciência. Ele manifesta a sua justiça no tempo presente, para ser
justo e justificar quem tem fé em Jesus" (Rm 3,23-26).
Deus faz justiça a si mesmo ao ter misericórdia! Eis a
grande revelação. O Apóstolo diz que Deus é "justo e justificador":
justo consigo mesmo quando justifica o homem; Ele, de fato, é amor e
misericórdia; por isso faz justiça a si mesmo – demonstrando-se verdadeiramente
como o que é – quando tem misericórdia.
Mas nada disto se entende quando não se compreende o que
quer dizer, exatamente, a expressão "justiça de Deus". Existe o
perigo de se ouvir falar de justiça de Deus e, ignorando o seu significado,
ficar-se com medo em vez de encorajado. Santo Agostinho já tinha deixado claro:
"A 'justiça de Deus' é aquela pela qual, por sua graça, nós nos tornamos
justos, assim como a salvação do Senhor (Sl 3,9) é aquela pela qual Deus nos
salva"[2]. Em outras palavras, a justiça de Deus é o ato pelo qual Deus
faz justos, agradáveis a Si, aqueles que creem no Seu Filho. Não é um fazer-se
justiça, mas um fazer justos.
Lutero teve o mérito de trazer de volta à luz esta verdade
depois que, durante séculos, pelo menos na pregação cristã, o seu sentido tinha
se perdido, e é isto, principalmente, que a Cristandade deve à Reforma, cujo
quinto centenário ocorre no próximo ano. “Quando descobri isto, eu me senti
renascer, e pareceu-me que se escancaravam para mim as portas do paraíso”[3],
escreveu mais tarde o reformador. Mas não foram nem Agostinho nem Lutero os que
assim explicaram o conceito de "justiça de Deus"; foi a Escritura que
o fez antes deles:
"Quando se
manifestaram a bondade de Deus e o seu amor pelos homens, Ele nos salvou, não
por causa de obras de justiça por nós praticadas, mas por causa da sua
misericórdia" (Tt 3,4-5). "Deus, rico em misericórdia, pelo grande
amor com que nos amou, fez-nos, de mortos que estávamos pelo pecado, reviver
com Cristo. Pela graça fostes salvos" (cf. Ef 2,4).
Dizer que "se manifestou a justiça de Deus",
portanto, é como dizer que se manifestou a bondade de Deus, o seu amor, a sua misericórdia.
A justiça de Deus não só não contradiz a sua misericórdia como consiste
precisamente nela!
O que aconteceu na cruz de tão importante a ponto de
justificar esta mudança radical nos destinos da humanidade? Em seu livro sobre
Jesus de Nazaré, Bento XVI escreveu:
"A injustiça, o mal
como realidade, não pode ser simplesmente ignorada, deixada acontecer. Deve ser
eliminada, derrotada. Esta é a verdadeira misericórdia. E que o faça Deus
mesmo, já que os homens não são capazes – esta é a bondade incondicional de
Deus"[4].
Deus não se contentou em perdoar os pecados do homem; Ele
fez infinitamente mais: Ele os tomou sobre si mesmo. O Filho de Deus, diz São
Paulo, "se fez pecado por nós". Palavra terrível! Já na Idade Média
havia quem achasse difícil acreditar que Deus exigira a morte do Filho para
reconciliar consigo o mundo. São Bernardo lhe respondia: "Não foi a morte
do Filho que aprouve a Deus, mas a sua vontade de morrer espontaneamente por
nós": "non mors placuit sed voluntas sponte morientis"[5]. Não
foi a morte, portanto, mas o amor que nos salvou! O amor de Deus alcançou o
homem no ponto mais distante a que ele tinha se expulsado ao fugir de Deus, ou
seja, a morte.
A morte de Cristo devia ser para todos a prova suprema da
misericórdia de Deus para com os pecadores. É por isso que ela não tem sequer a
majestade de certa solidão, mas é enquadrada, antes, entre dois ladrões. Jesus
quis ser amigo dos pecadores até o fim: por isso morreu como eles e com eles. O
ódio e a ferocidade dos ataques terroristas desta semana em Bruxelas nos ajudam
a entender a força divina contida nas últimas palavras de Cristo: "Pai,
perdoa-lhes porque não sabem o que fazem" (Lc 23,34). Não importa quão
grande o ódio dos homens, o amor de Deus tem sido, e será, cada vez maior. Para
nós, é dirigida, nas atuais circunstancias, a exortação do Apóstolo Paulo:
"Não te deixes vencer pelo mal, mas vence o mal com o bem" (Rm 12,21).
É hora de perceber que o oposto da misericórdia não é a
justiça, mas a vingança. Jesus não opôs a misericórdia à justiça, mas à lei de
talião: "olho por olho, dente por dente". Perdoando os pecados, Deus
não renuncia à justiça, mas à vingança; Ele não quer a morte do pecador, mas
que se converta e viva (cf. Ez 18,23). Jesus Cristo, na cruz, não pediu ao Pai
que vingasse a sua causa; pediu-lhe que perdoasse os seus algozes.
Temos que desmitificar a vingança! Ela se tornou um mito
penetrante, que contamina tudo e todos, começando pelas crianças. Grande parte
das histórias levadas às tela e aos jogos eletrônicos são histórias de
vingança. Metade, se não mais, do sofrimento que há no mundo (quando não se
trata de males naturais) vem do desejo de vingança, seja nas relações entre as
pessoas, seja nas relações entre países e povos.
Foi dito que "o mundo será salvo pela beleza"[6];
mas a beleza também pode levar à ruína. Há somente uma coisa que realmente pode
salvar o mundo: a misericórdia! A misericórdia de Deus pelos homens e dos
homens entre si. Ela pode salvar, em particular, a coisa mais preciosa e mais
frágil que há no mundo neste momento: o matrimônio e a família.
Acontece no matrimônio algo semelhante ao que aconteceu na
relação entre Deus e a humanidade, que a Bíblia descreve, precisamente, com a
imagem de um casamento. No início de tudo, dizíamos, está o amor, não a
misericórdia. A misericórdia só intervém depois do pecado do homem. Também no
casamento, no início não há misericórdia, mas amor. As pessoas não se casam por
misericórdia, mas por amor. Depois de anos, ou meses, de vida em comum, revelam-se
os limites pessoais, os problemas de saúde, do dinheiro, dos filhos; intervém a
rotina, que apaga toda alegria.
O que pode salvar um casamento de escorregar para um poço
sem fundo, senão o divórcio, é a misericórdia, entendida no sentido completo da
Bíblia, ou seja, não apenas como perdão recíproco, mas como um
"revestir-se de sentimentos de ternura, de bondade, de humildade, de mansidão
e de magnanimidade" (Col 3,12). A misericórdia faz com que ao eros se
junte o ágape; ao amor de busca, o de doação e de compaixão. Deus "se
apieda" do homem (Sl 102,13): não deveriam marido e mulher se apiedar um
do outro? E não deveríamos, nós que vivemos em comunidade, apiedar-nos uns dos
outros em vez de nos julgarmos?
Oremos. Pai Celestial, pelos méritos do teu Filho, que, na
cruz, "se fez pecado" por nós, afasta do coração das pessoas, das
famílias e dos povos o desejo de vingança e faz-nos enamorar da misericórdia.
Faz que a intenção do Santo Padre ao proclamar este ano santo da misericórdia
encontre resposta concreta em nosso coração e leve todos a experimentarem a
alegria da reconciliação contigo. Assim seja!
[1] Jacques-Bénigne Bossuet, “Sermon sur la Providence” (1662), in
Oeuvres de Bossuet, eds. B. Velat and Y. Champailler
(Paris: Pléiade, 1961), pág. 1062.
[2] S. Agostinho, O Espírito e
a letra, 32,56 (PL 44, 237).
[3] Martinho Lutero, Prefácio
às obras em latim, ed . Weimar, 54, pág.186.
[4] Cf. J. Ratzinger - Bento
XVI, Jesus de Nazaré, II Parte, Libreria Editrice Vaticana 2011, pág. 151.
[5] S. Bernardo de Claraval,
Contra os erros de Abelardo, 8, 21-22 (PL 182, 1070).
[6] F. Dostoiévski, O Idiota,
parte III, cap.5.
Pe. Raniero Cantalamessa, OFM
Cap
A tradução do italiano para o
português foi realizada por Zenit
Fonte: Rádio Vaticano
Foto retirada da internet
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Ricardo Feitosa e Marta Lúcia
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